Profissionais de saúde preparados para os desafios da inteligência artificial?

Jun 2 / Margarete Cardoso

Vivemos um momento desafiante. O envelhecimento da população, o aumento das doenças crónicas e a escassez de profissionais de saúde criam uma pressão crescente sobre os sistemas de saúde. Vemos todos os dias listas de espera intermináveis, equipas exaustas e dificuldades na gestão eficiente dos recursos. E, neste contexto, a Inteligência Artificial (IA) surge como uma das soluções mais promissoras. Mas, estão os profissionais de saúde preparados para os desafios da Inteligência Artificial?

Desafios da inteligência artificial na saúde

Entre o entusiasmo e a incerteza, há uma pergunta fundamental: Os profissionais de saúde estão preparados - e dispostos - a integrar esta tecnologia na sua prática?

Se, por um lado, a inteligência artificial pode melhorar a precisão dos diagnósticos, otimizar tratamentos e tornar os serviços mais ágeis, por outro, levanta dúvidas:
  • Até que ponto podemos confiar nestas ferramentas?
  • Como garantimos que complementa, e não substitui, o fator humano na saúde?
  • Será que os profissionais se sentem seguros a utilizar estes sistemas inteligentes?


Neste artigo vamos explorar o que realmente pensam os profissionais de saúde sobre a inteligência artificial e o papel da formação na sua adoção bem-sucedida.

O que pensam os profissionais de saúde sobre a IA?

Há algo que já sabemos: a inteligência artificial já não é o futuro - já está aqui, a transformar a saúde.

Hoje, sistemas inteligentes detetam anomalias que poderiam passar despercebidas a olho nu, ajudam a prever doenças antes que os sintomas apareçam e otimizam tratamentos para os tornar mais eficazes.

Mas apesar destas e de tantas outras vantagens, a adesão dos profissionais de saúde a esta ferramenta levanta questões.

E o que dizem os números? 

O estudo de Rony e colaboradores (2024) refere que: 
  • 73 % dos profissionais de saúde têm uma atitude positiva em relação à inteligência artificial, reconhecendo o seu potencial para melhorar diagnósticos e processos clínicos (figura 1).
  • No entanto, 61 % apresentam um conhecimento insuficiente sobre inteligência artificial, o que demonstra uma lacuna entre entusiasmo e preparação (figura 1).

Funções e Emprego na Saúde: Os Desafios da Inteligência Artificial 

Segundo o estudo de Sanad e colaboradores (2024), 73 % dos inquiridos acreditam que a inteligência artificial mudará significativamente as funções no setor da saúde. Contudo, 54 % receiam que esta tecnologia possa substituir alguns empregos na área médica, refletindo uma dualidade entre a esperança de uma medicina mais eficiente e o receio de que a tecnologia possa alterar drasticamente a dinâmica profissional (figura 2).

Diagnósticos e Erros Médicos: O Que Pensam os Profissionais de Saúde sobre a IA?

No que diz respeito à melhoria dos diagnósticos, 61 % afirmam acreditar que a AI pode melhorar os diagnósticos, 66 % defendem que pode reduzir os erros médicos e 70 % reconhecem que pode melhorar os resultados para os pacientes (figura 3) (Sanad e colaboradores, 2024).

Ou seja, os profissionais reconhecem o valor da inteligência artificial, mas também sentem um misto de entusiasmo e receio.

E há preocupações legítimas relacionadas com a própria tecnologia, mas a um nível mais profundo há incógnitas relacionadas com as pessoas, com as profissões que devem ser devidamente acauteladas para que a inteligência artificial seja implementada com sucesso.

Resistência à Mudança: Um dos Desafios Associados à Inteligência Artificial?

Há ainda um outro ponto importante: o desconhecimento sobre inteligência artificial pode levar à resistência à mudança.

Estudos mostram que os profissionais que compreendem melhor esta tecnologia têm maior probabilidade de adotá-la de forma eficaz. No entanto, sem uma formação adequada, a desconfiança e a hesitação são naturais.

A questão não é apenas a sua aplicação na medicina e na saúde. A questão principal é: estamos nós prontos para a inteligência artificial?

A grande lacuna: a IA nos currículos académicos

Se há um fator que pode determinar o sucesso ou fracasso da inteligência artificial na saúde é a formação dos profissionais. É que a falta de conhecimento pode minar a confiança e a competência na utilização de novas tecnologias. E importa referir que o seu uso inadequado pode, por si só, introduzir erros na prática médica.

E aqui encontramos um problema sério: a inteligência artificial ainda está praticamente ausente dos currículos dos profissionais de saúde.

Inteligência artificial: O que aprendem os estudantes de Medicina?

O estudo de Stewart e colaboradores, cujos resultados foram publicados em 2023, vai ao encontro dos estudos anteriores e salienta os seguintes dados:
  • 88 % dos estudantes de medicina nunca tiveram contacto formal com esta tecnologia durante a formação, e apenas alguns participaram em seminários e apresentações sobre o tema (figura 4);
  • 73 % sentem que chegam ao final do curso de medicina sem os conhecimentos necessários para trabalharem com inteligência artificial na sua prática clínica de rotina (figura 4);
  • 58,6 % defendem que deve haver uma formação estruturada sobre inteligência artificial no currículo médico (figura 4);
  • 72,7 % gostaria de receber mais ensino focado na inteligência artificial em medicina (figura 4).

Os temas considerados mais relevantes incluem (Jackson e colaboradores, 2024):
  • Conhecimentos e competências sobre aplicações de inteligência artificial (84,3 %);
  • Formação para lidar com questões éticas relacionadas com a inteligência artificial (79,4 %);
  • Análise de risco assistida por inteligência artificial para doenças (78,1 %).

Inteligência artificial: outros profissionais de saúde

Apesar de estes dados se referirem aos estudantes de medicina, a realidade não é diferente para as restantes profissões da saúde. A literatura mostra que as preocupações e as opiniões são transversais às várias profissões da saúde.

A falta de confiança, aliada às preocupações com o emprego, reflete o desconhecimento sobre a inteligência artificial entre os profissionais do setor da saúde. O conhecimento acerca desta tecnologia vai permitir aos estudantes perceber que a inteligência artificial pode estruturar os papéis e as funções profissionais e não substituir empregos.

Os estudos referem a necessidade de abordar estas preocupações na formação destes profissionais e de colmatar a falta de conhecimento, de modo a dotar os estudantes das competências e do conhecimento necessários, para que estejam preparados para trabalhar com esta tecnologia e usá-la de forma responsável.

Desafios da inteligência artificial associados à falta de conhecimento

No entanto, a realidade mostra-nos que essa adaptação ainda está longe de acontecer. Se a inteligência artificial já está a transformar a prática clínica, como podemos continuar a formar profissionais sem lhes dar as ferramentas para compreender e trabalhar com estas novas tecnologias?

Parece que estamos a formar profissionais de saúde para um mundo que já não existe.

Se um profissional de saúde não souber interpretar um resultado apresentado pela inteligência artificial, como pode confiar nele para tomar decisões? Não basta confiar nas tecnologias - é preciso saber interpretá-las.

Os estudos mostram que quanto maior a literacia tecnológica, mais positiva tende a ser a atitude em relação à inteligência artificial. E uma atitude favorável é essencial para que esta tecnologia seja integrada com sucesso. Os profissionais de saúde com uma visão positiva sobre a inteligência artificial têm maior tendência para investir na aprendizagem contínua sobre estas tecnologias emergentes. E investir em formação não só aumenta o conhecimento como também transforma atitudes.

Por outro lado, nesta era digital, é absolutamente essencial uma abordagem interdisciplinar nos currículos dos profissionais que os ajude a utilizar eficazmente estas ferramentas no futuro e que incluem a empatia, a comunicação e o conhecimento técnico sobre inteligência artificial. Os três devem ser ensinados de forma integrada nos cursos da saúde.

Literacia em saúde e literacia em IA: estamos preparados?

Mas a questão não se limita aos profissionais de saúde.

A literacia em saúde em Portugal continua a ser um desafio: 61,4 % da população tem um nível de literacia em saúde problemático ou inadequado. Em pior situação do que Portugal, apenas a Bulgária, onde 62,1 % da população também apresenta dificuldades significativas nesta área. No extremo oposto, a Holanda lidera o ranking com apenas 28,7 % da população a apresentar níveis problemáticos (figura 5) (Pedro e colaboradores, 2016).

Por outro lado, apesar de 82 % dos portugueses reconhecerem que a tecnologia melhora a qualidade de vida, 39 % ainda temem a inteligência artificial, 88 % preocupam-se com questões de privacidade e os serviços de saúde (46,5 %) constituem a principal área em que os portugueses querem que evolua digitalmente. Estes são os resultados do "Estudo de Literacia Digital 2022", da Fundação PHC.

Segundo Pedro (2018), a principal fonte de informação em saúde dos utentes continua a ser o contacto direto com profissionais de saúde.

E os profissionais de saúde continuam ainda a ter muito presente na sua prática o Modelo Biomédico em vez da Decisão Partilhada em Saúde (Pedro, 2018).

Literacia em IA numa população com baixos conhecimentos: um outro desafio?

Agora, juntemos a isto a literacia em inteligência artificial.

Se os próprios profissionais ainda têm dificuldades em compreender esta ferramenta, como podemos esperar que os pacientes confiem numa tecnologia que não entendem?

Se não houver um esforço para melhorar a literacia digital e médica, corremos o risco de criar um fosso entre quem compreende a inteligência artificial e quem se sente excluído por ela.

E esse é um problema que pode comprometer a adoção segura e eficaz da inteligência artificial na saúde.

Os grandes desafios da inteligência artificial no futuro próximo

Tudo isto que abordamos anteriormente, levanta-nos mais perguntas do que certezas ...

  • Estamos a preparar os futuros profissionais de saúde para trabalhar lado a lado com a inteligência artificial, ou estamos a formar profissionais desatualizados para a realidade tecnológica que aí vem?
  • Como garantimos que a inteligência artificial melhora os cuidados sem comprometer a relação profissionais de saúde e paciente?
  • Afinal, a questão não é apenas se a inteligência artificial está pronta para a saúde. A questão é: será que nós estamos?


Depois de todas estas questões, talvez a resposta mais honesta seja: não sabemos tudo ainda.

Mas há algo que sabemos com certeza: o futuro da saúde inclui a inteligência artificial.

A inviabilidade da IA no momento atual e no futuro próximo

O que está em causa não é se a IA deve ou não fazer parte da medicina - porque isso já está a acontecer. A verdadeira questão é como vamos garantir que essa transição é feita de forma segura, ética e vantajosa para todos.

E isso só será possível se garantirmos três coisas:

1. Profissionais de saúde preparados, com formação em IA e ferramentas para interpretar e validar as suas recomendações;

2. Pacientes informados e capacitados, para que possam tomar decisões de saúde mais conscientes e baseadas em dados fiáveis;

3.Uma implementação responsável, onde a tecnologia não substitui o humano, mas reforça a qualidade e acessibilidade dos cuidados.

A medicina sempre evoluiu com a ciência e a tecnologia. A IA não será diferente. Cabe-nos agora decidir como queremos moldar este futuro. Se este tema te desperta interesse, agora que leste o artigo, assiste ao webinar "Inteligência Artificial na Saúde: O Futuro é Agora - e Nós, Estamos Prontos?" que realizámos sobre esta temática!

Bibliografia 

Fundação PHC. Estudo de Literacia Digital 2022

Jackson, P., Sukumaran, G. P., Babu, C., Tony, M. C., Jack, D. S., Reshma, V. R., Davis, D., Kurian, N., & J. Anjum. (2024). Artificial intelligence in medical education – perception among medical students. BMC Medical Education, 24(804), 1-9. 

Pedro, A. R., Amaral, O., & Escoval, A. (2016). Literacia em saúde, dos dados à ação: tradução, validação e aplicação do European Health Literacy Survey em Portugal. Revista Portuguesa de Saúde Pública, 34(3): 259-275.

Pedro, A. R. (2018). Literacia em saúde: da gestão da informação à decisão inteligente [Doctoral dissertation, Escola Nacional de Saúde Pública – Universidade Nova de Lisboa].

Rony, M. K. K., Akter, K., Nesa, L., Islam, M. T., Johra, F. T., Akter, F., Uddin, M. J., Begum, J., Noor, M. A., Ahmad, S., Tanha, S. M., Khatun, M. T., Bala, S. D., & Parvin, M. R. (2024). Healthcare workers’ knowledge and attitudes regarding artificial intelligence adoption in healthcare: A cross-sectional study. Heliyon, 10(23), 1-15.
 
Sanad, A. H., Alsaegh, A. S., Abdulla, H. M., Mohamed, A. J., Alqassab, A., Sharaf, S. M. A., Abdulla, M. H., & Khadem, S. A. (2024). Perceptions of artificial intelligence in medicine among newly graduated interns: A cross-sectional study. Cureus, 16(10), 1-7.
 
Stewart, J., Lu, J., Gahungu, N., Goudie, A., Fegan, P. G., Bennamoun, M., Sprivulis, P., & Dwivedi, G. (2023). Western Australian medical students’ attitudes towards artificial intelligence in healthcare. PLOS One 18(8), 1-14.

Imagem via Adobe Stock.

Não esperes mais

Investe em ti e torna-te um profissional de referência

Criado com